terça-feira, 30 de julho de 2013

Violência contra as mulheres: história de uma vida!

É difícil entender um juiz que usa, como argumento para desqualificar um crime cometido por alguém, o fato de que a vítima não pode ser vítima apenas porque tem condições de se sustentar. Então isso significa que se eu estiver andando na rua e for espancada; o fato de ter um bom salário permite isso? Já não é de hoje que a luta para garantir a integridade e o respeito aos direitos da mulher é quase inglória. É, não concordo com a sentença que liberou Dado Dolabella de responder ao crime cometido. E os machistas nem precisam me perdoar, é crime sim o que ele fez. Mas não é desse crime contra a mulher que falarei hoje.

Imagem retrata símbolo do trânsito e um grito pelo fim da violência contra as mulheresA violência pesa quando menos esperamos. O mundo vive uma epidemia. Estudos apontam que pode chegar a um terço o número de mulheres que é ou já foi vítima de violência sexual (mais de 1 bilhão de mulheres e no Brasil esse número supera 29 milhões de mulheres). Desses crimes, pelo menos 70%[1] são cometidos por pessoas de confiança das vítimas, muitas vezes os próprios maridos, namorados, pais, irmãos, tios... Nesse contexto é assustador que a única preocupação, de um segmento importante de pessoas, gire em torno dos filhos que serão gerados dessas violências.
Sinceramente quando uma mulher é vítima de violência sexual ela não pensa nos filhos que podem vir desse crime, nas doenças que seu corpo pode receber, nem em anotar a placa. Toda a preocupação da vítima de violência sexual é se sentir limpa e viva de novo depois de tudo! E se vai ter pílula do dia seguinte, coquetel anti-HIV, vacinas mil e polícia no meio que seja o mais rápido possível, como quer a lei. E se vai ficar escondida no medo da humilhação maior de ser desrespeitada – porque o short estava curto demais, porque é muito bonita e se fosse feia não acontecia, porque ele jamais faria isso sua mentirosa, porque isso ou aquilo – que saiba viver a dor do esconderijo perdido onde entrar. Para quem não sabe como é a dor do abuso sexual, meu desejo é que nunca descubra; para quem sabe como é essa dor, meu desejo é que se redescubra.
 
Vocês devem estar se perguntando por que escrevo esse texto. Revolta! É doloroso, para quem luta pelo fim da violência contra as mulheres, ver que ainda somos tratadas como máquinas de parir e que o mundo acredita que temos condições de no momento do crime sexual decidir se queremos ou não a vida que sequer sabemos se existe em nós. Isso não é hipocrisia, é maldade. E por mais violento que o mundo seja é extremamente acalentadora a sensação de descobrir pessoas que com coragem seguem caminhos que nos fazem repensar. Hoje vou contar uma história assim, de perdão e vida.
 
Confesso que não me cabe entrar em detalhes que nada acrescentam. Felizmente minha personagem não precisa que eu revele seu nome ou idade. Ela pode ser sua vizinha, sua colega de trabalho, até mesmo sua filha ou irmã. Ela pode ser a mulher que você nunca viu e que apareceu estampada nas páginas policiais um dia. Ela pode ser qualquer uma de mais de um bilhão de mulheres vítimas de violência sexual, mas certamente nunca será uma qualquer. Lembram-se do redescobrir que desejei lá em cima. Ele me apareceu assim, como um anjo, um sopro de vida. E como todos sabem que quem conta um conto sempre aumenta um ponto, não se chateiem com os pontos suprimidos ou os incluídos.
 
Ela me pediu que escrevesse com carinho. Revelou tudo que havia acontecido e deixou claro que nada daquilo importava mais. Verdade seja dita, não parecia a mulher que era, mas a menina cheia de vida e redescoberta que me contava um conto. Ela deixou claro que quem tinha cometido o crime já estava morto e sequer tinha lhe pedido desculpas. Com os olhos e a alma escancarados e a suavidade da criança em dúvida me perguntou se era certo machucar alguém e nem pedir desculpas. Nada respondi.
 
Depois, como se tudo já não bastasse, me perguntou por onde deveria começar. Eu sorri e disse: você já começou. Ela gargalhou, jogou a cabeça prá trás e disse suavemente: “não, nada disso importa. O que realmente importa é que eu quero ser feliz!” Rasguei tudo o que já havia anotado e recomecei aquela história.
 
“Algumas histórias não precisam de nomes, nem de datas, e sequer de fatos” ela disse já com lágrimas nos olhos. “Esta é uma delas. Eu nasci para ser a alegria de papai e mamãe. Sempre fui muito manhosa e teimosa. Tinha mania de exigir tudo a tempo e a hora, atenção integral desde bebê. Aos cinco anos comecei a ser abusada sexualmente por alguém a quem dediquei todos os sentimentos possíveis (amor, desejo, alegria, fé, esperança, amizade, carinho, afeto, mágoa, raiva, ódio e por fim, o principal, amor de novo). Aprendi com muita dificuldade a me defender. Engordei porque acreditava que sendo feia ninguém iria me machucar e eu estaria protegida. Tolinha! Só hoje entendo que a beleza não está na carcaça do lado de fora.” Ela falava quase sem respirar e eu engatava perguntas que pareciam vir sem pedir licença. “Sabe quando me fazem essa pergunta eu não sei se rio do absurdo ou se choro com a sinuca de bico que me colocam. Não eu não saberia dizer se seria capaz de abortar uma criança, ainda que ela fosse fruto de um estupro, mas agradeço a Deus todos os dias por nunca ter precisado tomar essa decisão. Eu lhe garanto que durante todos os anos de dor e humilhação isso jamais me passou pela cabeça. E depois com tanta água sanitária e desinfetante duvido que algum espermatozoide tenha se arriscado a sobreviver. Esse tipo de situação aonde o mundo resolve jogar as mulheres é muito ofensivo. Eu não vou dizer que devemos abortar uma criança fruto de estupro, mas pergunto por que essas mesmas pessoas mandam suas filhas tomarem a pílula do dia seguinte quando elas se esquecem de usar camisinha no sexo consensual. Gente é um bicho muito esquisito, melhor a hipocrisia né?!“ ela falava e mexia nos cabelos. Mesmo brava, demonstrava uma enorme vontade de viver.
 
“O importante é falar de hoje! O passado não importa mais. Quantos banhos eu tomava entre o fato e a chegada dos meus pais em casa, ou quantas vezes tentei me matar para fugir daquilo. Porque meus pais não acreditaram em mim ou porque isso aconteceu. Tudo bobagem infinita. Hoje nada disso interessa. Eu cheguei num ponto que a carcaça que eu construí para me proteger parece que se quebrou sozinha. Eu me guardei tanto nesse monte de banha e fantasia que hoje já me pergunto até se estou mesmo aqui“. Depois dessas palavras a gargalhada sumiu e deu lugar a uma testa firme e um olhar determinado. “Depois de muito tempo vivendo um único papel ficamos cansadas” ela afirmou sem pestanejar. E diante da minha inquietação prosseguiu “Se até um Papa pode cansar do seu papel porque eu não posso? Quer saber, ser vítima esgota a gente! E é sobre isso que quero falar, o cansar de ser a eterna vítima de uma história. Pergunto: quem são os personagens mais chatos de uma novela?! As Mocinhas e os mocinhos, claro! Ninguém aguenta a choradeira que não acaba e os problemas que nunca se resolvem. Eu não me aguentei também. Sabe cheguei a uma simples conclusão: seguir adiante é sempre uma questão de fé. Acreditar que tudo vai dar certo e seguir sem saber aonde iremos é fé pura. Tudo o que sempre o que planejei sobre isso, não alcancei. Queria ser invisível e olha aí; minha gargalhada, meu tamanho e minha alma não deixam. Então porque não ser exatamente quem sou: feliz, corajosa e determinada?! Bem melhor que vítima, certo?!” Suas perguntas não pediam respostas e não me atrevi a revelar isso a ela.
 
“Nesse tempo que fiquei escondida, fugi da intimidade, do compartilhamento e da alegria de construir vidas em comum. Perdi tempo, abandonei pessoas, fugi de responsabilidades que eram minhas e no fim o que me restou?! Apenas a mágoa. Resolvi retomar o resto e abrir mão dela. É muito difícil saber o que é pior: ser vítima do que não sabemos ou culpada de nossas escolhas. E eu tinha que fazer as minhas: viver ou morrer? Afundar na dor do passado ou redescobrir meu melhor? Sinceramente não quero ressuscitar ninguém, tampouco quero ressuscitar mágoas e dores que já estão bem enterradas, quero apenas dizer que sei quem eu sou e o que fiz para chegar aqui. Depois de tanto ser vítima, resolvi agir pra não me transformar em algoz de mim mesma. Resolvi perdoar.” As perguntas pulavam na minha mente. “O caminho mais fácil?!” ela retrucou soltando uma gargalhada. Eu não tive dúvidas de que tinha feito uma pergunta imbecil.

“Olha, minha cara, não existe caminho fácil quando escolhemos a vida! Existem caminhos únicos. Alguns são mais tortuosos, outros são mais solitários e mais tantos são mais bonitos, mas ninguém pode afirmar que são fáceis. Quem procura facilidade pode pedir prá ser parede na próxima chance – se houver.” E sua gargalhada parecia oxigênio puro vindo do coração. Senti vibrar sua energia e mais que rápido engatei a última pergunta que me vinha à mente. Ela sorriu. Depois me olhou no fundo dos olhos e respondeu sem titubear: “Perdoar era minha única saída, meu único caminho, minha última chance! E não tenha dúvidas de que cada segundo dessa história toda não faria o menor sentido sem o perdão. Podemos passar uma vida inteira chorando a dor de uma ferida que não temos como fechar ou podemos chorar em cada casquinha retirada até que ela se feche sozinha, com tempo e mertiolate. No fim podemos olhá-la e nem lembrarmos o que aconteceu, mas sempre sentiremos a dor que pode ser bem maior quando não sabemos o motivo. Ou podemos sentir a dor sabendo o que aconteceu e ainda assim sermos muito felizes porque aquela ferida nos ensinou como um machucado cicatriza. Esse é o princípio do perdão, esse é o princípio do amor, esse é agora o meu princípio de vida! Agradecer e perdoar são minha única chance de seguir em frente, é minha escolha de fé”.

Eu não tinha mais perguntas. Fiquei ali, parada, olhando-a profundamente e ao final entendi tudo. Para além de toda a violência imposta (muito maior que apenas sexual), ela escolheu viver. Aquela mulher sofreu abuso sexual por quase quinze anos, não teve o apoio da família como queria. Por várias vezes encharcou-se de álcool, água sanitária e desinfetante. Outras tantas vezes ela passou noites em claro sentada na porta do quarto para que seu abusador não entrasse sorrateiro na madrugada. Depois de tudo, viu o criminoso morrer antes de ter se arrependido. Sentiu-se infinitamente culpada por um tempo que nem mesmo conseguia contabilizar. Para fugir das dores ela fugiu de si mesma e só depois de muito lutar resolveu romper um ciclo que parecia infinito e se libertar. Ainda falta muito caminhar, mas ela não tem medo do caminho, nem das pedras que ele terá. Seu único medo é não perdoar.

Para saber mais sobre violência contra mulheres conheça a campanha “UNA-SE pelo fim da violência contra as Mulheres da ONU”.
Documentário Canto de Cicatriz de Laís Chaffe sobre abuso sexual


[1] Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).

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